Na malinha de mão do meu coração
Os meninos faziam o jazz, no Museu de Arte Moderna da Bahia, virar a melhor experiência musical do mundo
Chegávamos por volta das seis da noite e acompanhávamos as viradas do batera, marcando o ritmo com os pés. As meninas tiravam a roupa e se atiravam ao mar.
Fazia poucos meses que nos conhecíamos. Mas, eternidades efêmeras erguiam pontes em segundos em paletas de violão. Tocava Raul no esquenta, antes da Jam Session.
Melhor que festa, presença. Cada um vale o que guarda na malinha de mão do seu coração. Eu guardo esses invernos soteropolitanos. Brisa que solfeja nostalgia.
Com o coração no bolso, descíamos a Avenida Contorno, a cada sábado, encarando a Baía de Todos-os-Santos.
Eu apertava o casaco de punhos puídos, as mãos deslizando por dentro. A travessia do centro de madrugada, alta, sem medo.
Paris, Texas.
As incertezas do Universo ficavam por ali, bem perto. Esculpidas, séculos e séculos, nos desvãos do casario. Travessia entre o passado e o presente.
Andávamos sempre juntos, “anéis de noivar nos cinco dedos”, cabelos e ideias embaralhados. Entre ritos e mistérios.
Poetas estrangeiros aguardavam nas prateleiras dos sebos. Vindos de países distantes, comunicavam-se conosco em seus dialetos.
Os frontispícios dos livros guardavam dedicatórias amareladas para amores impossíveis e histórias incríveis que incendiavam novos projetos.
Vivíamos com esses amigos imaginários, esquecendo as fotografias dos amigos reais nos bancos dos últimos ônibus.
Em escaletas de influências, organizávamos um roteiro. A beatitude de Neal Cassady em On the Road, o pianinho hipnotizante de Ray Manzarek em Light My Fire.
Cada um de nós, muito ao seu jeito, tentava vencer o desafio de Arturo Bandini, sempre o mesmo em cada livro de John Fante:
“Escrever uma única frase que seja perfeita. Então, virá todo o resto e escreveremos para sempre”
A cidade era nossa. Floresta barroca onde nos escondíamos no verde das folhas. Palimpsesto de outras. Como era doce perder-se entre elas.
O Solar do Unhão, o Museu de Arte Moderna, os meninos do jazz desmontando a coisa toda. A noite se erguendo sobre o antes, o futuro em câmara lenta.
Os instrumentos, e a música, retornando às suas caixas. As meninas encharcadas de azul, em uma versão punk de Esther Williams em Escola de Sereias.
Os pés marcando o ritmo nas viradas do batera. Felicidade sob chuva fina. E, antes de ter lido Walter Benjamin, já ouvíamos o estalar de cada graveto.
Fotos: Freepik (batera) e Divulgação